Em meio a confusão uma figura pequena se levanta. "Eu o levarei" diz ela, "eu o levarei!", repete agora de forma mais enfática.
Com um olhar ao mesmo tempo gentil e cheio de pesar, Gandalf se volta para o pequeno hobbit e, os poucos, o tumulto cessa.
"Eu levarei o anel até Mordor" diz Frodo Bolseiro, "porém não conheço o caminho".
Continuando nossa jornada na busca por uma melhor compreensão das expressões de afeto na masculinidade, utilizaremos duas cenas da trilogia "O Senhor dos Anéis" como ponto de partida de nossa análise. No texto anterior falamos sobre o afeto entre mentor e pupilo, e desta vez falaremos sobre uma relação que certamente está presente na vida de todos nós: a amizade. Todos temos amigos, conhecidos, "irmãos" de causa ou circunstância. Mas como funciona a amizade entre homens? Como o afeto se manifesta e se expressa neste contexto?
Sob o ponto de vista da psicologia, o amigo costuma ser uma pessoa na qual projetamos a nós mesmos. Alguém que vive em condições parecidas, tem experiências similares e enfrenta problemas como nós. O amigo costuma ser visto como um "igual". Costuma ser alguém com quem convivemos e alguém com quem construímos um vínculo afetivo e emocional. Uma pessoa da qual gostamos e que ao mesmo tempo gosta de nós de volta.
Como muitas outras coisas na vida, temos a percepção de que este vínculo de amizade é estabelecido e vivido de forma distinta por homens e mulheres. Neste texto falaremos especificamente sobre a forma que homens se relacionam com outros homens. Provavelmente alguns elementos estejam presentes também nas relações com mulheres ou entre mulheres, porém estes casos não são o objeto de reflexão deste texto. Dito isto, vamos começar!
Os amigos da escola, do futebol, do trabalho, da cervejada...
"Eu o ajudarei com esse fardo, Frodo Bolseiro", diz Gandalf se posicionamdo ao seu lado. "Enquanto tiver que carregá-lo".
"Se com minha vida ou minha morte eu puder protegê-lo, eu o farei", diz Aragon e, ajoelhando-se perante Frodo, continua: Minha espada é sua".
Seguindo o exemplo de Aragon os demais membros presentes se manifestam:
Legolas — "E o meu arco é seu".
Guimli — "E meu machado".
Boromir — "Você carrega o destino de todos nós. Se esta é a vontade deste conselho, Gondor participará".
Repentinamente, escondido de trás das plantas, pula Sam: "O senhor Frodo não vai a lugar nenhum sem mim!", diz ele enquanto ocupa um lugar junto ao grupo.
Com uma expressão que mistura divertimento e surpresa, Elrond responde: "É verdade. É quase impossível separá-los, mesmo quando ele é chamado para uma reunião secreta e você não é".
De longe vemos Merry e Pippin, amigos de Frodo e Sam, saindo de trás das colunas gritando: "Esperem! Nós também vamos!". Correndo para se juntar ao grupo Merry fala: "Terão que nos mandar para casa amarrados em um saco para nos impedir". Ao que Pippin completa: "Enfim, precisarão de pessoas inteligentes pra essa tal missão... jornada...coisa".
Assim somos apresentados a Sociedade do Anel, um grupo que inclui amigos de longa data, conhecidos e até mesmo rivais. Escolhi esta cena pois nela podemos observar diferentes contextos e momentos de uma amizade: amigos íntimos como Frodo e Sam; amigos da família como Frodo e Gandalf; conhecidos como Frodo e Aragorn; e até mesmo rivais que se tornarão amigos no futuro como Legolas e Guimli. Ao mesmo tempo que poderíamos chamá-los todos de amigos, dificilmente consideramos estas relações exatamente iguais e indistinguíveis.
Uma das características de um vínculo de amizade é a reciprocidade entre os envolvidos. Para que exista reciprocidade é necessário que haja também algum tipo de convívio, ainda que pontual e momentâneo. Pessoas que não se conhecem, não convivem ou não realizam algum tipo de tarefa em conjunto dificilmente serão reconhecidas, e se reconhecerão, como amigas. O contexto onde o convívio acontece e a prática exercida durante ele são elementos que naturalmente utilizamos para distinguir uma amizade de outra. Quando falamos em amigos do trabalho, amigos da escola e amigos do futebol, estamos fazendo exatamente isso.
Essa distinção se torna importante na hora de identificarmos o que é um comportamento adequado ou não para aquela relação. Alguns amigos são mais próximos que outros, alguns amigos nos conhecem mais que outros, com alguns amigos nos permitimos ter determinados comportamentos que não estaríamos confortáveis em ter com outros. Tudo isso depende do ambiente e das práticas realizadas durante o convívio.
Além de seu contexto e exercício, para que um vínculo de amizade se estabeleça e se sustente ao longo do tempo é necessário que ele tenha uma função, exemplificada na seguinte frase: "amigo é aquele que torna o bem estar possível e o mal estar tolerável".
Dificilmente você irá encontrar alguma criança que goste de estudar e ir para escola; porém muitas estão dispostas a "passar por este mal" pois é lá que encontram os amigos e se divertem. O mesmo poderia ser dito em relação ao trabalho, à reunião de condomínio e outras tarefas ou ambientes chatos que fazem parte da vida de um adulto funcional. Em outras palavras: amigos tornam uma situação ruim "menos pior" e mais tolerável. Agora, a função mais reconhecida e típicamente associada à amizade costuma ser a de proporcionar o bem estar. Amigos que convidamos para festas, jogamos futebol ou realizamos algum tipo de atividade prazerosa costumam ser mais facilmente percebidos como amigos. São eles que "tornam o bem estar possível" visto que fazer algumas destas atividades sozinho, ou com desconhecidos, não é tão bom quanto fazê-las com amigos. Estes são os amigos que costumamos convidar para outros espaços que não o de origem, que chamamos para atividades diferentes e que, consequentemente, desenvolvemos uma maior intimidade e longevidade na relação.
Esta "classificação das amizades" se fundamenta na teoria comportamentalista de condicionamento operante. Para que a explicação não tome muito tempo, vamos simplificá-la em: "todas as consequências que nos incentivam a fazer algo são consideradas reforçadoras". Dentre elas existem dois tipos: as positivas, que contribuem para o nosso bem estar; e as negativas, que diminuem nosso sofrimento. Relações sociais tem seu exercício e manutenção preservados em função de tudo aquilo que nos oferecem de bom e tudo aquilo que nos poupam de ruim. Para que uma amizade se estenda ao longo do tempo e do espaço, seja exercida em diferentes contextos e diferentes etapas da vida, é necessário que ela apresente ambos os benefícios: torne o bem estar possível e o mal estar tolerável, seja reforçada positiva e negativamente nos contextos em que é exercida.
O que observamos em amizades entre homens é que os reforçadores de uma relação geralmente são evidentes, concretos e objetivos. Aquele colega de escola é meu amigo pois jogamos futebol juntos, passamos o recreio juntos e fazemos os trabalhos escolares juntos. Apresentamos características similares e fazemos atividades sociais em parceria, por isso desenvolvemos um vínculo emocional e afetivo. Este caminho do concreto para o abstrato, do comportamental para o emocional, costuma não ser apenas evidente em amizades entre homens, mas fundamental para sua existência. No momento em que esta fundamentação prática deixa de estar presente, o vínculo emocional perde a intensidade e pode até ser extinto ao longo do tempo.
Sendo assim, podemos dizer que, na maioria dos casos, homens são amigos porque fazem coisas juntos, e não o contrário. Mas atenção! Não estou dizendo que homens não apresentam um vínculo emocional e afetivo em suas amizades; estou dizendo apenas que práticas associadas ao exercício da amizade costumam surgir antes das respostas emocionais associadas ao vínculo. Basta lembrar dos personagens Legolas e Guimli citados anteriormente: na cena descrita eles ainda não eram amigos, porém foi através do convívio e das dificuldades superadas durante a jornada que houve o estabelecimento do vínculo e a consolidação da amizade. Apesar do exercício ser essencial para o surgimento e manutenção da amizade, o vínculo afetivo ainda tem a importante função de concretizar e consolidar a relação.
Talvez você esteja pensando: "nossa, mas que análise mecânica e funcionalista de algo que a gente simplesmente sente". E você está certo! Esta é sim um análise funcionalista do vínculo, mas para que possamos falar agora das emoções associadas precisávamos antes entender como uma amizade funciona de um ponto de vista não emocional.
A noção do excessivo e o desconforto associado à expressão emocional
Após uma batalha que em diversos momentos quase resulta em sua morte, Sam corre até Frodo, que se encontra imóvel estirado no chão.
"Senhor Frodo!" diz ele enquanto rasga as teias que cobrem o rosto de seu amigo e companheiro.
"Oh não... Frodo... Senhor Frodo..."
Sam pega o corpo de Frodo no colo e, com uma expressão de dor, chora enquanto fala.
"Acorde senhor. Não me deixe sozinho aqui. Não vá aonde eu não possa seguí-lo. Acorde meu senhor."
Chorando enquanto embala o corpo de seu amigo no colo, Sam chega a conclusão de que Frodo está morto.
Esta é apenas uma das diversas cenas onde Sam demonstra abertamente o carinho que sente por Frodo e uma das diversas cenas que costuma causar estranhamento em muitos homens. Suspeitas de uma relação homossexual e piadas sobre uma possível "amizade colorida" entre os hobbits eram comuns na época em que o filme foi lançado, exatos vinte anos atrás, devido à cenas como esta. Podemos observar que ainda hoje muitos homens apresentam uma reação de legítimo estranhamento e desconforto ao serem alvo de expressões diretas de afeto, percebidas como excessivas ou inadequadas, ainda que realizadas por amigos e pessoas próximas. Basta observar como, aqui no Brasil, homens e mulheres costumam se cumprimentar: enquanto mulheres beijam e são beijadas na bochecha, homens cumprimentam uns aos outros com um aperto de mão e no máximo um abraço. Ainda que estejamos falando de amigos de longa data, dificilmente veremos dois homens trocando beijos na bochecha ao se encontrarem na rua, no serviço ou antes do futebolzinho.
Como diversos outros hábitos e comportamentos culturais, a percepção de que determinada expressão de afeto entre homens é inadequada ou excessiva pode ser ao mesmo tempo muito clara e de motivação desconhecida. Dizer o porquê de ser estranho cumprimentar um amigo com um beijo na bochecha é bem mais difícil do que simplesmente saber que "não é assim que se faz". A dificuldade de descrever o motivo por trás de um comportamento pode ser interpretada como um indício do quão precoce na vida de uma pessoa este comportamento é introduzido e reforçado.
Retomando o que falamos antes sobre comportamentalismo e condicionamento: "todas as consequências que nos incentivam a fazer algo são consideradas reforçadoras", podendo ser positivas ou negativas. Mas e porque não cumprimentamos todo mundo com um beijo? Porque homens deixam de beijar outros homens quando vão cumprimentá-los? Além das consequências tidas como reforçadoras, existem também as percebidas como punitivas, ou seja, aquelas que nos desincentivam a realizar determinados comportamentos. Punições também podem ser positivas, quando causam mal estar, e negativas, quando reduzem o bem estar. Conhecer as definições de reforço e punição nos ajuda a entender o efeito que discursos como o famoso "homem não chora" e "vou te dar motivos para chorar" tem em meninos que estão aprendendo a expressar suas emoções.
Observando o resultado final, a sensação de estranhamento perante a expressão de afeto, podemos pensar que este comportamento provavelmente esteja associado à consequências percebidas como punitivas ao longo da vida: "Quando expresso afeto, ou quando o demonstro em excesso, sou punido (algo acontece que me causa mal estar ou me diminui o bem estar). Sendo assim, as chances de que eu venha a expressar afeto novamente da mesma forma, na mesma medida e no mesmo contexto diminuem." Este processo provavelmente ocorre desde muito cedo no desenvolvimento de garotos e o seu resultado é a formação de um homem que não se sente confortável em expressar suas emoções ou até mesmo nem sabe fazê-lo. Observe que estou falando aqui, expressar emoções de forma geral. Provavelmente isto aconteça tanto com emoções negativas, como a raiva, a tristeza e o nojo; quanto com emoções positivas, como a alegria, o afeto e o carinho. Um menino que corre para dar um abraço e um beijo na sua dinda talvez não receba a mesma resposta calorosa e afetiva ao correr para dar um abraço e um beijo em seu dindo.
Da mesma forma que este menino se acostuma a não expressar, ele também se acostuma a não receber. Conforme ele passa a ser socializado como homem adulto e não mais como criança, aumentando o convívio com outros homens que também tem dificuldade em expressar emoções, provavelmente ele deixe de receber abraços, beijos e carinhos com tanta frequência. Resultando não apenas em um homem com dificuldade de expressar emoções, mas também que não sabe como responder a essa expressão; isto porque não foi ensinado ou até mesmo foi punido quando o fez.
O que observamos é que a maioria dos homens associa demonstrações explícitas de afeto à relação fraternal e familiar, ou então à relação sexual e amorosa. Abraços, beijos e carinhos são comportamentos destinados a familiares ou pessoas com quem temos alguma espécie de vínculo sexual, não amigos e conhecidos (independente do nível de intimidade). Por este motivo, quando Sam não só abraça mas chora a morte de Frodo e pede para que ele não o deixe, muitos homens percebem este comportamento como excessivo e inadequado.
Todo homem aprende desde muito cedo que afeto pode ser demais, e que seu excesso resulta em punição. Mudar este cenário é possível, mas não acontece de um dia para o outro. Mudanças culturais e sociais são resultado de ações individuais, cotidianas e rotineiras. Cobrar afeto, cobrar carinho, cobrar empatia de um indivíduo que não sabe demonstrá-la, ou pior, não a recebe quando precisa, é apenas punir a ausência de expressão sem reforçar a sua presença. Enquanto não tratarmos meninos e homens de forma mais afetiva, permitindo e validando sua expressão emocional, não teremos homens mais capazes de fazê-lo e condenaremos gerações futuras ao mesmo sofrimento.
Autor:
Léo Hemann Strack
@psicologiadacoisa
Revisão e edição de Texto:
Débora Carvalho
@psideboracarvalho
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